Quando decidi escrever crônicas semanais eu certamente não estava em meu juízo perfeito. Não que eu algum dia eu tenha estado. Digo isso porque nem sempre estamos dispostos a escrever. Em especial quando nos damos a escrever sobre questões tão pessoais. Durante um tempo me questionei se isso poderia ser considerado literatura. Esse falar a partir de mim não seria egocentrismo? Depois de um tempo, concluí duas coisas: nessa vida só falo por mim. Lembrou-me Manoel de Barros: não saio de dentro de mim nem pra pescar. Lembrou-me minha amiga Alliny, que pesca e não mente, no momento no Araguaia, mas que também não saiu de dentro de si, ainda que esteja pescando. Voltando ao assunto, a segunda razão é que enquanto humanos somos apenas variação do mesmo tema, de forma que o que eu sinto encontra ressonância em boa parte das pessoas. O texto da semana passada, por exemplo, foi um sucesso de público e crítica entre solteiros, casados e tico-tico no fubá. Sim, eu sou velha.
A questão é que depois de escrever um texto que tocou tanta gente fica uma certa pressão em como ser tão bem-sucedida por duas semanas consecutivas. E desde quinta estou matutando (sou velha) e queimando a mufa (bem velha mesmo) para saber sobre o que eu vou falar hoje. E adivinhem: não achei tema. Então me lembrei de um pequeno texto que escrevi há um tempo. Esse texto tem uma história engraçada. Eu me submeti a um processo seletivo onde tinha que escreve uma autobiografia. Um amigo francês, que sempre me fala para escrever um livro, pediu para ler a tal autobiografia. Mandei para ele e o que sucedeu foi engraçado. Ele leu e falou: não tem começo nem fim. Ele ficou revoltado, incrédulo. Falou de tese e antítese e mil coisas sobre cronologia e pensou que uma autobiografia teria que vir no formato de uma dissertação. Foi uma experiência curiosa porque foi o primeiro leitor que teve coragem de falar que meu texto estava uma bosta (mas ele falou com muita educação). Esse cara uma vez falou que eu tinha uma característica da mulher francesa que ele gostava muito e na sequencia disse que sou cínica. Falei que em português chamamos de irônica, que é mais bonito e intelectualmente aceito.
Enfim, de fato minha autobiografia em cinco capítulos não foi feita por ordem cronológica, mas agrupada por temas. O último capítulo chama-se Homens e Tramas e agora entendo claramente porque ele me veio à mente. Vou transcrevê-lo.
Homens e Tramas
“Sou jornalista de formação. Em dado momento entendi que havia um ponto de inflexão em mim que me encaminhava para outro caminho. Não era claro para onde essa curva ia, mas ela mudava a minha direção. Assim, acabei trabalhando em um banco, cuidando da governança.
Olhando em retrospecto, não foi exatamente um ponto de inflexão, pois na essência continuei fazendo o mesmo: contando histórias. Ser a secretária de uma governança exige que se conheça uma série de leis e regulamentos e que se registre a história de uma instituição da forma como ela acontece. Altamente factual e altamente subjetivo: por um lado registra-se o sim ou o não, mas registra-se também as razões. Com o tempo percebi que estava traduzindo aquelas pessoas em palavras.
Há um conto de Jhumpa Lahiri chamado Intérprete de Males. Conta a história de um homem cuja profissão era traduzir as dores dos pacientes para o médico. O médico americano, os pacientes indianos. Há sobre esse homem imensa responsabilidade. Como o texto de Lahiri diz “das doenças mal interpretadas não se sara”. Traduzir é uma arte.
Essa história toda me remete ao bordado. Uma vez um amigo pediu que eu o ensinasse a bordar. Assim o fiz: comprei linhas, agulhas, tecido e bastidor e passei a dar a ele lições básicas. Como dar o primeiro ponto, como bordar linhas retas, linhas curvas, ponto-atrás, ponto cheio, como arrematar. E lição principal: o bordado bem feito tem seu lado direito e avesso perfeitos. A trama vista pela frente deve se refletir em seu avesso. Nada de linhas trançando em zigue-zague, se emaranhando e dando voltas. Direito e avesso em alinhamento.
O bordado é uma trama que se faz por cima de outra trama. O tecido com suas linhas entrelaçadas oferecendo suporte para um novo desenho. Se por um lado o tecido tem sua forma dada, o bordado é construído pelas nossas mãos. Por vezes nos falta criatividade, por vezes nos falta a técnica.
Em determinado momento fui mostrar o avesso de um bordado ao meu aprendiz. Era um quadro com arabescos em volta e no centro uma frase. O arabesco estava ótimo no direito e no avesso. Mas a frase... estava em total desalinho. O que falei para justificar marcou a nós dois: - As palavras são as mais difíceis. No bordado e na vida.”
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