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Sobre grandezas e pequenezas

  • Foto do escritor: Michelle Ramos
    Michelle Ramos
  • 28 de jan.
  • 4 min de leitura

“(…) nós, na verdade, nos sentimos mais seguros ao descobrir, em meio aos nossos dramas,

outros dramas dos quais fomos poupados.” (Houellebecq, em Serotonina)



Sai de férias. Aluguei um chalé nas montanhas, onde me refugiei por 10 dias. Antes, planejei uma parada em Campinas (visitar a Sandy e o Júnior). Mentira, queria levar meu filho para conhecer o Museu Aberto de Astronomia, que fica no Pico das Cabras. Querí­amos ter a experiência de observar o céu estrelado por meio de um telescópio.


Depois de um dia inteiro dirigindo, resolvi descansar no meu primeiro dia de forasteira. Saí para tomar café na hora do almoço. Ia comer no Starbucks, mas achei um café chamado Tim Baker. Troquei um americano por outro, mas o segundo era artesanal. Um cara que saiu dos Estados Unidos para abrir uma cafeteria em Campinas… Apenas o amor ou a loucura explicam isso, mas ambos são tão parecidos que terminam no mesmo.


Meus planos envolviam andar a esmo pelo bairro, mas o sol na moleira argumentou que talvez fosse melhor ir para o Airbnb terminar de ler Serotonina, de Michel Houellebecq. Tinha ouvido falar bastante dele. Atualmente um marginal, pois não professa os ideais do tempo. E eu estou sempre a favor dos marginais, não dos que andam armados assaltando a torto e a direito. Refiro-me aos marginais de pensamento, que estão sempre nadando contra a maré, se colocando de peito aberto ao ataque da maioria.


Houellebecq, de fato, pode ser considerado um maldito moderno. Ofende minorias a cada suspiro e a humanidade como um todo a cada piscar de olhos. Do jeito que gosto. Então fui atravessada por pensamentos peculiares, como, por exemplo, por que viajei para ficar lendo? Respondi com naturalidade: viajo para me afastar da minha casa, da minha cozinha, da máquina de lavar roupas, da geladeira com comida esperando para ser preparada, como uma madame que comparece ao spa para sair mais macia e suculenta. Então ri. Porque gastei muitos reais para poder me afastar das obrigações . Poderia fazer isso sem grande esforço dentro de casa, apenas me negando a me submeter à tirania doméstica. Enfiar toda a comida na minha própria cápsula de criogenia (vulgo congelador da geladeira), fingir total falta de recursos e passar os dias frequentando os restaurantes da minha própria cidade. Com o dinheiro que gastei, talvez pudesse comprar um restaurante com dois cozinheiros dentro.


Constatando a falta de lógica, continuei a pensar nisso e entendi que a rotina é como um buraco negro supermassivo que atrai tudo para dentro de si e, uma vez atravessado o horizonte de eventos, tudo é sugado e nem mesmo a luz consegue sair. Por isso (pelo menos para mim), é necessário um afastamento físico das coisas ordinárias.


A questão é que eu sempre caio no mesmo dilema: olhar para a vida e tentar encontrar uma teoria para tudo (virgem com ascendente em capricórnio, astronomia feat. astrologia). Mas é sempre difícil olhar pelo microscópio e pelo telescópio ao mesmo tempo. As vezes é preciso se afastar completamente de si, olhar pelo telescópio. No varejo, a gente vai lidando consigo mesmo pelo microscópio. Talvez seja isso que acontece lá na singularidade do buraco negro: tudo é reduzido a pó, e a gente fica ali nas partículas. O engraçado é que, olhando de longe, tudo que consigo enxergar da minha vida se parece com pontos de luz esparsos vagando caoticamente por um espaço infinito e que se expande.


Vou ser mais didática. Há alguns anos, eu escrevia uma crônica por semana. As ideias fervilhavam; eu colocava aquela loucura toda no papel e publicava. Nessa época, eu fazia análise duas vezes por semana. Comecei a ficar muito orgulhosa da mudança provocada e, eu sendo eu, resolvi estudar psicanálise para entender como isso funcionava. Queria ser uma espécie de Professor Pardal da subjetividade. O problema é que eu me esvaziava totalmente na análise e comecei a ficar sem ideias para escrever. Parece que, de fato, é necessário algum tormento para ser escritor. Tem que ter uma angústia sempre preservada para empurrar as palavras para fora.


Agora estou aqui, quatro anos após essa ideia estapafúrdia. Não chamo a psicanálise de estapafúrdia; chamo a minha ideia em si. Eu achava que havia uma ordem no caos. Spoiler: não há. Na prática, a teoria é outra. Eu me zanguei, mandei minha formação com analista e tudo para o espaço e assim terminei meu 2024.


Volto para minhas férias. Aqui, no alto da Serra da Mantiqueira, bem longe da minha rotina, consigo ver a luz brilhante da psicanálise, reluzindo intensamente, habitando meu universo particular, caótico e hilário (eu me vejo assim). E assim, vou me amigando com a ideia de que não preciso ter forma nem fazer sentido. Da mesma maneira que o espaço que habitamos. É claro que faz mais sentido pensarmos que somos seres que habitam o planeta Terra. Mas ele está Via Láctea, que compõe um superaglomerado de galáxias, que, todas juntas e unidas, formam o universo. Então podemos nos considerar astronautas, viajando numa enorme nave que seria nosso próprio planeta. Assim, a psicanálise, minha família, meu trabalho, meus hobbies de leitura e culinária habitam em mim, mas não me definem. Daqui a cinco dias volto a olhar pelo microscópio. Atravesso novamente o horizonte de eventos. Enquanto isso, retomo o hábito da escrita e os convido a vir conversar comigo semanalmente.


 

Sobre o passeio no Pico das Cabras: choveu. Não vi nada. Fica para a próxima (vida).


Sobre Serotonina: trata-se de uma história em primeira pessoa de um cara sem preocupações com subsistência, mergulhado num imenso vazio. Os boletos tem a sua utilidade. Mas tem um trecho do livro que, de certa forma, foi a matéria escura desse texto:


“Eu havia entrado em uma noite sem fim, mas ainda subsistia alguma coisa dentro de mim, bem menos que uma esperança, uma incerteza, digamos. Também se pode dizer que, mesmo quando pessoalmente a gente já perdeu a partida, quando jogou a última carta, alguns - não todos, não todos - ainda acalentam a ideia de que algo lá no céu vai anular a mão, decidir arbitrariamente que se distribuam as cartas de novo, que se joguem os dados de novo, e isso, apesar de nunca terem vislumbrado, em momento algum da vida, uma intervenção, nem sequer a presença de uma divindade qualquer, apesar de terem plena consciência de que nãoo merecem especialmente a intervençãoo de uma deidade favorável, e apesar de saberem que, a julgar pelo acúmulo de erros e falhas que constitui sua vida, merecem menos que qualquer um.”

 
 
 

2 comentários


queirozlucianna
29 de jan.

Inspiradora a viagem!! Acredito que o distanciamento da rotina nos traz uma multiplicidade de boas ideias!

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Michelle Ramos
Michelle Ramos
29 de jan.
Respondendo a

O tal ócio criativo. 😉

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