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Foto do escritorMichelle Ramos

Querido Diário

Prezado Diário,


não estou a venda (estou sim). Na verdade a crise está feia, mas tão feia, que nem O Diabo mais compra almas, só pega em consignação. Pra você ter uma ideia, eu investi um pouquinho de dinheiro e essa coisa de Covid-19 comeu 30% dele. Isso foi antes do Moro mandar print de WhatsApp pro Jornal Nacional e dar entrevista pro Fantástico. Daqui a pouco quando as bolsas abrirem nem Deus sabe o quanto isso ainda vai derreter. Aí dá aquela arrependida de não ter torrado tudo que juntei. Viajando pra Itália, como vinha sonhando. Achava que precisava de mais dinheiro, porque quero conhecer restaurantes incríveis. Agora, o dinheiro ficou menor. E me pergunto quando vai voltar a ter Itália novamente. O mundo, querido diário, esta temporariamente fechado. Um eufemismo, dado que não há prazo pra reabertura. Uma espécie de tem, mas acabou. Tem mundo, mas acabou. Vai voltar a ter? Não há resposta.


Eu sei que ando sumida. Meu último texto data do final de novembro. Dizem que o que a gente faz na noite de réveillon é o que mais teremos no ano. Eu passei meu réveillon sozinha em casa, lendo e cá estou eu, há mais de 30 dias em confinamento. Parece que a simpatia funciona mesmo. Desde que sumi, li um bocado também. Resolvi estudar mitologia e me debrucei sobre três volumes a respeito. Parei de escrever querido diário, porque eu andava um samba de uma nota só. Em verdade querido diário, ainda não consegui mudar muito a nota do meu samba. Minhas perguntas continuam sem resposta. Eu sou como o asno de Buridan. Para quem não conhece, trata-se de um paradoxo filosófico sobre livre-arbítrio. Refere-se a uma situação hipotética em que um asno é colocado à mesma distância de um fardo de palha e um recipiente com água. Uma vez que o paradoxo assume que o asno irá sempre para o que estiver mais perto, ele irá morrer de sede e de fome, uma vez que não pode tomar nenhuma decisão racional sobre a escolha de uma ou de outra hipótese. Copiei a explicação da Wikipédia diário. São 3h49 da madrugada, quebra essa e faz de conta que a explicação é minha. Vou morrer de sede, de fome ou de sede e de fome? Não há resposta.


Mas, olhando o lado bom da vida, trata-se apenas da minha vida sentimental. Porque profissionalmente resolvi construir outra trilha. Decidi ampliar meus conhecimentos, o que é bem fácil. Resolvi participar de um processo seletivo e voltar a estudar. Fiz tudo direitinho, tinha que tirar cópia do diploma, autenticar no cartório, fazer uma autobiografia, arrumar o currículo, preencher uma ficha, pagar uma taxa... mas a coisa toda está suspensa. Vai voltar um dia? Vou ser aceita? Não há resposta.


Depois de passar dois meses sem escrever - na linha do tempo estou em fevereiro - eu cogitei voltar. Pensei em disfarçar meu óbvio tom monocórdico fazendo um curso de escrita criativa. Procurei um curso, me matriculei, separei caderno e lápis, abri o computador pra ver se ainda funcionava. Estava salivando pra começar, mas aí... Veio a quarenta em Brasília. Aulas suspensas. Depois de duas semanas de isolamento, a escola que administra o curso fez uma enquete: querem fazer as aulas remotas? Não sei qual foi o placar, mas eu falei NO! Acredito que depois de 15 dias estava todo mundo de saco cheio das virtualidades, das videoconferências, das conexões que caem, dos áudios que somem, dos microfones abertos revelando a balbúrdia do home office. Enfim, aguardamos um informe sobre o dia que iniciaremos o curso. Mas no momento, não há respostas.


Sabe querido diário, acabei de perceber: hoje é aniversário de alguém que conheci... aniversário de 50 anos. Era uma pessoa de quem eu gostava muito. Ele não morreu, mas é como se tivesse. Porque como os mortos, ele não se comunica mais, não comigo. Eu me lembro do Chico Xavier, falando das comunicações com os mortos. Ele dizia: o telefone só toca de lá pra cá. A ruptura, estranha, foi como uma morte mesmo sabe? Ontem tinha, hoje não tem mais. Game over. Mas ele não morreu, anda por aí a passos largos pelo Rio (eu acho, não tenho evidência nenhuma). Haverá vida após a morte? Não há resposta. Ficam os meus parabéns lançado ao universo. Se eu fosse dar um presente a ele daria um livro chamado Cartas Extraordinárias, com uma marcação no texto chamado Dê corda no relógio.


Então é isso, querido diário. Continuo de dieta, continuo lendo. Resolvi que vou ler a obra toda de Saramago. O primeiro que li, Intermitências da Morte, me pegou de jeito. Na verdade havia lido Ensaio sobre a Cegueira, mas isso foi numa outra vida. Saramago entrou no meu coração com Intermitências da Morte. Aí li a Viagem do Elefante, O Homem Duplicado. Li o Evangelho Segundo Jesus Cristo e devo dizer que o JC de Saramago me parece mais crível que o da Bíblia. Agora estou lendo Jangada de Pedra. Uma metáfora maravilhosa para o Brasil de hoje. A história conta que a Península Ibérica se separou da Europa e se afasta rapidamente do continente, como um navio... mas eles estão à deriva, não há ninguém no controle. No meio disso, a história fantástica de 5 pessoas e um cachorro que aparentemente tem algo a ver com a rachadura pirenáica (Saramago me faz rir). Até o momento o livro, assim como a vida, não explicou nada. Explicará, o livro ou vida? Não há resposta.


Mas deixo a promessa: volto semana que vem e te conto, querido diário.

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