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Foto do escritorMichelle Ramos

Ponto de Vista


Fotografia de NY - Michelle Ramos

Já havia anoitecido quando ela se levantou e foi embora, sem dizer uma única palavra. Eles haviam chegado no final da tarde, se sentaram naquele banco da praça e lá ficaram em silêncio, observando o pôr do sol no horizonte. Ficaram horas, ambos naquele banco, de pernas cruzadas, em absoluto silêncio, olhando o mesmo horizonte e vendo coisas diferentes.

Quando ela se levantou e saiu sem olhar para trás ele não esboçou reação. Continuou de pernas cruzadas olhando para o mesmo ponto fixo. Há muito tempo eles já estavam a ver as coisas de formas diferentes. O que ele viu quando ela se levantou: a mulher com quem tanto ele partilhou indo embora sem notar que ele ainda continuava ali. O que ela viu quando se levantou: um céu sem estrelas e uma lua minguante, um fino risco no céu a esmorecer. Ele viu um final de caminho, ela viu o início de um novo caminhar.

Agora naquele banco de praça ele olha tudo e nada o toca. Ele assiste o mendigo se deitar na sua cama de papelão e se cobrir com um trapo, que um dia foi um cobertor. O mendigo bebe um gole de pinga, pra aquecer e entorpecer, se vira para um lado e dorme. Quarto de mendigo não tem canto. Ele não pode fazer nada pelo mendigo, nem por ninguém.

Naquele início de tarde, quando se sentou com ela no banco, a vida tinha um pouco mais de cores, ainda que fosse impossível negar o desbotado. Não só porque era manhã e havia verdes e amarelos e azuis em profusão. Assim que chegaram, sentaram-se e começaram a observar o ir e vir das pessoas. Observaram lá na frente um casal de amigos passeando com um cachorro. Sentaram-se na grama, soltaram o cão da guia, ficaram a sós conversando. Viram, ambos, o amor tomar sua forma. Ela viu quando a garota apoiou o queixo nos joelhos e ficou ouvindo as histórias do garoto. Viram quando o garoto colocou a mão sobre ombro da garota, trazendo-a para perto. Ela chorou vendo o amor nascer, deu pra ver seus olhos mareados. Ele só viu os olhos dela chorar. Era óbvio, para ele, que ela chorava o amor que lhe faltava.

Quando se viram pela primeira vez, ele viu um brilho em seu olhar. Olhos que brilham são olhos que sorriem. Viram juntos, numa manhã de domingo, um homem a nadar solitário no mar, um caminho de pedra coberto de folhas secas. Viram com alegria a fumaça da xícara de café. Viram os raios de sol encontrar brechas na copa da árvore e alcançar a superfície do relógio dourado, um novo sol brilhando naquela mesa. Após anos de uma noite escura, eles viram juntos o nascer de um dia ensolarado. E agora, no crepúsculo, ela se levantava e vai embora sem se despedir.

Há um tempo ele percebeu em seu olhar que o amor havia morrido. Ele podia ver no olhar dela. O brilho havia acabado. Ela chorou ao ver o amor nascer como aquela mãe que já enterrou seu filho e de alguma forma inveja a mulher no puerpério. Ela sabe que algumas mortes são incontornáveis. O dia acabou com o réquiem do amor. Ele viu, impotente, o brilho dos olhos dela se esvair pouco a pouco, em cada lágrima vertida. Ele aprendeu que olhos que choram são olhos em que o brilho escorre, líquido e salgado, pelas faces. Ele viu, impotente, o brilho dos olhos dela escorrer, pouco a pouco, até que não sobrou brilho algum. Ela também não pode fazer nada nem pelo mendigo, nem por ninguém.

Ele continuou de pernas cruzadas naquele banco até o amanhecer. Logo cedo uma mulher que ele nunca havia visto, se sentou ao seu lado. Ela olhou para ele com curiosidade. Por alguns minutos o encarou. Ele continuou olhando para seu ponto fixo. Ela olha para os lados. Só há os dois naquela praça, além do mendigo que ainda dorme. Então ela o pega em suas mãos. Descruza suas pernas e o encara. Ela olhou para ele, olhou através dele. Por alguns minutos, ambos de estudaram. Ele via novamente olhos que brilham. Ela viu um olhar embaçado. Ela retirou seu casaco de moletom, agora já não sente mais frio. Ela o colocou no rosto e percebeu que aqueles óculos escuros, jogados naquele banco, ficavam muito bem nela. Bafejou sobre as lentes dos óculos e as secou com a ponta do casaco. Pronto, agora já não há mais embaçado. E ele voltou a ver alegria no mundo.

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