Havia escassez de mão de obra. Por essa razão flexibilizaram os pré-requisitos. Aquela noite em que Mario morreu, subiu direto ao céu e de pronto já recebeu seu crachá. Mario de Sá, Anjo Júnior. Mario tomou um susto, não era exatamente assim que ele imaginava que seria sua vida após a morte. Na verdade, ele esperava ir para o inferno. Mentalmente começou a elencar as razões para isso: havia vendido seu Marea depois de um acidente e garantiu ao comprador que aquele automóvel nunca havia sido batido. Teve aquela outra vez em que pediu dinheiro para a irmã e nunca pagou. Na adolescência, em um acesso de raiva, desejou a morte dos pais. Transou com a vizinha, transformando a esposa e o vizinho em cornos, numa tacada só. Lembrou das pequenas desonestidades no trabalho para ser promovido, uma fluência em inglês no currículo. Mas o que o incomodava mesmo de estar naquele lugar, agora na qualidade de anjo, foi lembrar de quando, em uma noite, depois de quatro taças de vinho ele apontou o dedo indicador para o céu e disse: - Deus, se você acha que devo agradecê-lo por essa vida de merda, saiba que você pode pegar essa bosta e enfiar no rabo.
Obviamente havia algo de errado nos controles internos que o permitiu ser anjo. Mas, boato a favor não se desmente. Pegou seu crachá e dirigiu-se ao seu trabalho. Por ser principiante, foi designado para seus cuidados um ser humano também principiante. Gisele, primeira encarnação como humana. Em sua encarnação anterior ela foi um porco. Mas era um porco magnânimo. Rosado e muito cordial, comia apenas comidas gourmet, nada de lavagem. Aprendeu a comer devagar e sempre. Assim engordou com muita qualidade, rendeu um ótimo presunto cru e uma panceta que compôs os melhores pratos daquele restaurante três estrelas Michelin. Tantos atributos a elevaram a condição de humana.
O problema é que algumas coisas não desaparecem do nada. Gisele, enquanto humana, conservava traços de espírito de porco, além de uma tendência a engordar, e Mario ainda sentia sede. Ele não conseguia controlar a vontade de beber água. Isso o intrigava. Lembrava de Asas do Desejo e do anjo que não via cores, não sentia cheiros nem gosto. Ele não, ele era um anjo que sentia sede. Assim, com frequência bebia água, café, vinho, uísque, fermentados e destilados de toda sorte. Os efeitos eram os mesmos: a água que entrava tinha que sair e Mario era o anjo que urinava.
Primeiro dia de trabalho. Gisele foi posta aos cuidados do irmão do mais velho. Acreditando que crianças tem responsabilidade resolveu ir ao banheiro. Voltou correndo ao ouvir o choro, o irmão foi brincar de Playmobil, a irmã rolou da cama e caiu no chão. Quando já dominava a arte de andar, Gisele foi brincar com os irmãos de cabra-cega. Mario havia bebido dois copos de água ao amanhecer. Achou que não havia razão para se preocupar. Foi ao banheiro. Ao retornar encontrou Gisele com o rosto banhado de sangue. Ela havia batido a cabeça na quina da arca da sala de jantar. Houve uma ocasião em que ela pisou em um prego enferrujado enquanto ele foi à cozinha beber água.Teve uma outra vez, durante uma viagem da família para a praia. As duas famílias pararam num posto. Mario foi ao banheiro. As famílias já estavam se preparando para seguir viagem. Ele não percebeu que Gisele havia trocado de veículo. Na primeira curva da estrada, o carro em que Gisele estava bateu em outro que fazia uma conversão proibida. Gisele e seu espírito de porco estavam sem cinto, o que fez com que ela fosse arremessada do carro. Ela não morreu, mas sofreu muito naquelas férias com a água salgada banhando seus machucados.
Assim, a pobre Gisele, ainda muito sem jeito como ser humano, assessorada por um anjo da guarda que urinava, foi aos poucos se fechando para a vida. A cada acidente, a cada desilusão, a cada decepção, ela se fechava para a vida, na tentativa vã de não sofrer. Apenas um porco inocente poderia acreditar que isso funcionava. E Mario, o anjo mijão, percebendo seu fracasso, bebia cada dia mais. Se entorpecia e deixava Gisele em maus lençóis. A cada ida ao banheiro, a cada porre, Gisele se metia em uma enrascada: comprou um Peugeot, fez jornalismo, casou mal, comprou um telefone Samsung, viajou de classe econômica da Aeromexico, na companhia da sogra, para Nova Iorque, foi trabalhar em um banco, investiu em bitcoins, usou crocs, pulou carnaval no bloco Baby Doll de Nylon, passou o réveillon na Chapada dos Veadeiros, pintou o cabelo de loiro, emprestou dinheiro para conhecidos, torceu pelo Botafogo, confiou nas pessoas, se apaixonou.
Gisele, pobrezinha, conseguiu superar quase tudo, mas sucumbiu ao amor. De todos os erros, esse a anulou para sempre. Ao longe, bebendo sua água de coco, Mario viu Gisele saltar da Pedra do Arpoador e desaparecer no mar de Ipanema. FIM
Moral da história: se você ainda urina, não se meta a cuidar da vida dos outros. Não vai dar certo.
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