Obituário
- Michelle Ramos
- 28 de nov. de 2020
- 3 min de leitura

Hoje fazem 7 dias. Se acreditasse em Deus, talvez fosse o caso de rezarem uma missa. Mas não era. Michelle Ramos, 42 anos, foi encontrada caída no chão do banheiro de um hotel de São Paulo enrolada em uma toalha. Sozinha naquela cidade, Michelle foi a São Paulo tratar de um assunto pessoal do qual não queria falar com ninguém. Entretanto, àquilo que deveria ficar fora do olhar do mundo foi posto no palco com as luzes do holofote ressaltando os contornos e desnudando para a plateia ávida o segredo que ela queria manter.
Naquela noite do dia 21 de novembro Michelle havia deixado Lucien de Rubempré abandonado pela Sra. de Bargeton. Página 218, edição da Penguin Classics da Companhia das Letras, Michelle estava lendo, pela segunda vez, o clássico Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac. No livro haviam dez marcações de post-it com os trechos que ela mais havia gostado. Grifado de marca texto azul a frase que ela tomava como a síntese de sua existência “Não podia contar com coisa alguma, nem mesmo com o acaso, pois há vidas sem acaso”. Na mesa da cabeceira de sua cama, em Brasília, aguardava o Dom Casmurro, em edição ilustrada da Antofágica que ela comprou na pré-venda e esperou um par de meses para receber. Ainda não havia iniciado a leitura, mas na quarta capa a frase “Nem tudo é claro na vida ou nos livros” já tinha suscitado nela uma enormidade de reflexões.
Com o salário do dia 20, havia pago todas as contas. Queria ter ido jantar no Evvai. Até reserva tinha feito. Mas por várias questões reviu o plano e resolveu descansar. Tomar banho fazia parte do plano. Tombar ao chão antes de vestir o pijama não. Quebrar o lado direito da face também não. A Michelle que caiu não mais se levantaria. Ela jaz eternamente no chão frio da suíte 2215 do Hotel Renaissance. Certamente assombrará aquele quarto, derrubando objetos na alta madrugada ou ligando a torneira, deixando o hóspede com aquela dúvida se havia esquecido de desligar a torneira depois de escovar os dentes. A mancha do sangue escorrido no chão do banheiro foi rapidamente eliminada. O sangue, tal qual o café, é limpo da mesma forma pela equipe da limpeza. Alguém se enxugará com a agora alva toalha outrora tingida de escarlate. Todos os resquícios daquela noite foram apagados. A história não tem mais evidências.
Tão solitária e abandonada quanto Lucien de Rubempré em Paris, ainda teve que lidar com os reflexos daquela história. Michelle ficou pensando em qual é o estado físico da matéria de um corpo morto. Qual o nome que se dá para as coisas que estão naquele exato ponto em que não se é mais o que se era e ainda não se transformou em alguma outra coisa nomeável? Em qual estado está a partícula de água que deixa de ser gelo e ainda não virou líquido?
Então Michelle hoje está nesse ponto: morta e quase viva, meio que reencarnando numa nova existência. A história da mulher só em São Paulo em plena pandemia, desmaiada e sem ajuda num quarto de hotel. Uma história banal, tão simples e reta, sem razões e culpa, que quase não faz sentido. No momento em que percebeu que até mesmo a verdade pode ser inverossímil, Michelle entendeu que qualquer história pode ser possível.
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