O Incolisível ou Como fui ludibriada por uma criança de 10 anos
- Michelle Ramos
- 17 de mai. de 2020
- 3 min de leitura

Domingo de manhã meu filho já inicia o diálogo falando sobre física. Ele fala para mim que a gravidade, a lei da atração dos corpos, é que faz o universo funcionar. Ele diz: - Mãe, pense que o universo é uma rede, ao colocarmos um peso no centro na rede, o que acontece? A rede afunda, digo. Essa força de atração que dá forma ao universo. Então me lembrei de uma conversa que tivemos há um tempo, em que ele me contou que os átomos são incolisíveis. Perguntei o que era e ele falou: é uma capacidade de repelir. Se não fosse isso, todas as coisas nos atravessaria. Isso só não acontece por essa característica dos átomos. Achei o conceito tão interessante que nunca me esqueci. Na hora saquei essa fala dele do bolso e perguntei: ué, mas essa teoria contradiz aquela do átomo. No que ele explicou: mãe, uma força não anula a outra, elas coexistem, se não fosse por essa capacidade o peso que colocamos na rede a atravessaria.
Bem, voltemos ao mundo real. Terminei meu café e fui para a internet ler mais sobre a tal característica incolisível do átomo e descobri que não existe isso no google. Se não existe no google não existe na vida. No dia, Benjamin me explicou o incolisível como aquilo que não se penetra. Meu pequeno Guimarães Rosa inventou o incolisível e eu acreditei... Credibilidade é isso não é? Na hora, o conceito parecia incrível pois, de alguma forma, explicava porque dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço.
Passei o dia refletindo em como fui ludibriada por essa criança. Então avancei na leitura de História do Cerco de Lisboa. Saramago... Conta a história de um revisor que altera uma passagem de um livro que conta a história sobre o Cerco de Lisboa. Ele acrescenta um não na história e ninguém vê. O livro é impresso com o erro e distribuído com uma errata. Depois da casa arrombada, a editora contrata uma supervisora para os redatores. A nova supervisora chama Raimundo, o revisor, e no lugar de demiti-lo sugere que ele escreva a versão que imagina para história. Como seria se aquele não continuasse ali. Sem nenhuma explicação por parte de Saramago, eles se apaixonam.
No momento em que se percebe apaixonado, ele inicia a escrita do livro. E então Saramago vai, utilizando-se da narrativa da guerra, dando forma à narrativa do amor. Amor e guerra. A atração e o incolisível. A pura ambiguidade humana em nível atômico. O querer e não querer. Como diz Saramago no livro “(...) é menos dificultoso conceber, criar, construir e manipular um cérebro eletrônico do que encontrar no nosso próprio a simples maneira de ser feliz.” Ainda não terminei a leitura, mas no momento, os personagens estão com dificuldade de lidar com a materialização do sentimento, atraindo-se e repelindo-se. Em determinado momento, Maria Sara, a editora, pergunta “Por que é que gosta de mim, diga-me, Não sei, gosto, E não teme que quando começar a saber, possa começar a não gostar, Às vezes acontece, acontece muito mesmo, (...)”
Comecei a rir só, pensando que, se de fato, essa coisa do incolisível existisse, ela seria altamente aplicada ao amor. É incrível como o ódio, a raiva, a ira e a indiferença nos perpassa sem resistência. Mas o amor, pra entrar, é como arrombar a Porta de Ferro dos muros que cercavam Lisboa. Mas ao contrário da guerra, nós somos o próprio exercito inimigo. Dentro de nós habitam um exército mouro e um exército cristão, ambos lutando intermitentemente. Saramago diz que a ambiguidade não é sempre um defeito. Defeito ou qualidade, não me pego a discutir. Afirmo apenas que o aplicativo vem instalado de fábrica. E já me relacionei com alguns seres incolisíveis. Talvez por isso a história do meu filho fez tanto sentido para mim. Algumas pessoas fecharam os Portões de Ferro e nada os abrirá.
Penso no quanto posso ser incolisível também... Será que a chave disso tudo é parar de lutar e abrir calmamente o Portão de Ferro e deixar entrar o exército cristão? Haverá uma forma de deixar entrar o exército inimigo sem deixar exposto os civis? Saramago disse lá pelas tantas nessa história: “(...) só na sinfonia de Beethoven o destino chama e torna a chamar, na vida não é assim, há ocasiões em que tivemos a impressão de que alguém estava lá fora à espera, e quando fomos ver não era ninguém, e há outras em que chegámos apenas um segundo tarde de mais, e tanto fazia, a diferença é que, neste caso, ainda podemos ficar a perguntar-nos, Quem terá sido, e levar o resto da vida a sonhar com isso.” Viver é estar atento aos perigos e ainda assim decidir correr riscos.
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