O tema de hoje é o Sobrenatural. Agora que começo a escrever me lembro que Nelson Rodrigues tinha um personagem em suas crônicas esportivas, o Sobrenatural de Almeida. Era um fantasma do mal, responsável por todos os fracassos do Fluminense. Todo grande autor tem um fantasma para chamar de seu. Shakespeare com Hamlet, Jorge Amado em Dona Flora e seus Dois Maridos (apenas uma mente doentia imaginaria que uma mulher se meteria nessa furada de ter dois maridos) e Saramago.
O caso é o seguinte: sigo firme no meu objetivo de ler toda a obra de Saramago. Essa semana terminei de ler Quase todos os nomes. Curioso é que no livro apenas um personagem tem nome, o lacônico Sr. José. O Sr. José é o funcionário de um cartório de registro e vive a registrar os nomes dos nascidos e dos morridos. Numa vida morna, sem mulher, sem filhos e sem família, ele tem um passatempo: colecionar recortes de pessoas famosas. Um dia, para incrementar sua coleção, o Sr. José resolve copiar a certidão de nascimento dos famosos registrados no cartório. Numa dessas de selecionar fichas, ele traz uma por engano, de uma mulher anônima. Chamar de anônima uma certidão de nascimento parece maluco, mas uso anônimo como antônimo de famoso. E também porque não nos é dado a conhecer o nome da mulher. O fato é que o Sr. José resolve conhecer a história da mulher desconhecida e de alguma maneira começa a se relacionar com ela.
O problema é que inicialmente ele se relaciona com a certidão de nascimento, depois descobre a madrinha da mulher, sabe de algumas coisas da vida da família dela, descobre a escola onde estudou. Ele sabe que ela é divorciada, tem a averbação do divórcio no registro. O Sr. José não sabe ao certo o que fará ao encontrar a mulher desconhecida. O teto da casa, com quem ele conversa, diz que ele a procura pelo amor. De fato, o que dá movimento à vida do Sr. José é a mulher desconhecida. Ocorre que, nas poucas semanas que se passam a história, ela morre. A forma que ele descobre a morte não o permite saber a causa e ele resolve descobrir do que morreu a mulher desconhecida.
Fiquei pensando em quantas vezes não estamos a nos relacionar com os mortos. Ou com os etéreos, com coisas sem substância. E os mortos não são penas pessoas, são situações, sentimentos, filosofias de vida... Em dado momento do livro, o Sr. José, vai ao cemitério visitar o túmulo da mulher desconhecida. Lá descobre que ela se suicidou... O enterro recente, um túmulo sem lápide, ele em frente a uma placa com um número, pensando o que será de agora por diante. O Sr. José, que é dado a umas loucuras, resolve dormir no cemitério, embaixo de uma oliveira. Ao acorda encontra um pastor que levava as ovelhas para pastarem no cemitério. Impossível não pensar na alegoria de Jesus Cristo e suas ovelhas. Jesus pastoreando as almas recém libertadas de seus corpos, a recolhê-las na aurora... Em certa altura o pastor conta ao Sr. José que tem um hábito: trocar as placas dos túmulos quando ninguém está olhando. Então, as pessoas, quando retornam ao cemitério, choram aos mortos errados, enganados que foram pela peripécia do pastor. Ao fim do diálogo, o pastor se vai, atravessando uma ponte, que passa por cima de um rio. Se você é um bom leitor consegue perceber a alegoria de transpor o mundo dos vivos e dos mortos, o rio por onde Caronte nos transporta para chegarmos ao Hades... Na mitologia, existe um rio chamado Lete, e ao passar por suas águas a alma se esquece do que foi em vida...
Talvez nos falte banharmos nas águas do Rio Lete ainda em vida. Surfarmos, quiçá. Porque algumas coisas, ainda que as matemos, continuam a viver em nós. No livro o Sr. José resolve descobrir a causa do suicídio e segue em sua relação de mão única. Ele conhece os pais da moça e chega a ir à casa dela. Ele abre o guarda-roupas e toca os vestidos, senta em sua cama, descansa em seu sofá, chega a ouvir a voz dela na secretária eletrônica. E então, vai embora. O livro ainda segue e a mulher desconhecida, pelo o que o livro dá a entender, seguirá povoando a vida do Sr. José. Terminei a leitura me perguntando: como matar a mulher morta?
Saí para comprar umas frutas, fui à pé. Resolvi ouvir Paralamas do Sucesso. Há um álbum chamado Os Dias, ao vivo (calhou com a temática), nesse álbum há uma música chamada Longo Caminho, que gosto muito. Por acaso, essa música, originalmente, foi gravada após o acidente de ultraleve que acabou vitimando a esposa do Herbert Viana, mas a música, foi escrita antes. Penso no peso de cantar “Há dias de prazer e dias ruins/ Já não sou mais quem era antes/ Há algo de você ainda em mim/ Como uma música distante/ Eu vivo tão só/ Tão só...”. Pelas entrevistas de Herbert, Lucy continua viva.
Bem, cadê o fantasmagórico da história, se perguntam os senhores. Então vamos ao ponto. Essa semana estava conversando com meu psicanalista. Falei para ele que minha vida tinha perdido a marca de registro. A marca de registro são marcações que a impressora usa para sobrepor as camadas de cor no lugar certo do papel. Quando há problemas na marca de registro as imagens coloridas ficam com aquelas bordas de cor chapada e claramente deslocadas. Então ele falou: “ah sim, os fantasmas”. Sim, chamamos de fantasmas também... Achei curioso que meu psicanalista dominasse termos tão técnicos de produção. E voltamos aos fantasmas. Conversamos sobre os fantasmas todos de uma vida. Da minha, no caso. Fantasmas que andam a arrastar correntes, a mudar coisas de lugar, que me amedrontam de uma forma profunda e com os quais me relaciono cotidianamente.
Nessa loucura de quarenta isso tudo se acentua. Minha vida toda anda ocorrendo nessa cadeira onde me encontro. Aqui sento para o café, leio as notícias, almoço, trabalho, faço ligações furiosas onde juro meio mundo de morte, atendo candidamente minha mãe, sonho em voltar ao circo, leio Saramago, converso com meu filho, tomo vinho... tudo nessa cadeira. É muita energia condensada em um espaço só, muitos cadáveres no mesmo jazigo. A Michelle furiosa tem vontade de dar uns sopapos na Michelle fofa, a Michelle leitora tem vontade de entupir a boca da Michelle furiosa, a Michelle furiosa acha tudo isso uma baboseira e quer pegar em armas... é insuportável. Olha que eu falei só de algumas das Michelle existentes. Cada Michelle dessa, dado o problema com a marca de registro, está saindo do contorno. Tenho que colocar todas essas camadas de volta no lugar.
Quando está no cemitério, o Sr. José vendo aquela imensidão de túmulos constata o quanto os mortos ocupam espaço. Ele pensa em como seria mais racional enterrarmos todos de pé, um ao lado do outro, como os Guerreiros de Terracota... O fantasmagórico Sr. M (Freud explica) refere-se a todos esses Mistérios que morrem e ainda vivem e ocupam espaço em nossa vida. Um vez me descrevi como um zumbi, que morto, anda como se vive fosse, sedento daquilo que um dia já teve (não me refiro ao cérebro!). Há muito a enterrar. E depois de enterrar, haverá muito a esquecer.
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