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Não havia motivos

  • Foto do escritor: Michelle Ramos
    Michelle Ramos
  • 26 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

Black and White de Marillina Besteiro

Eu não queria vir. Eu sou de exatas, essa festa é de humanas. O que essa turma faz com o simples ato de se comunicar deveria ser estudado por uma junta de notáveis. Freud, claro, porque só pode ser problema na infância. Colocaria Darwin para rever sua teoria, uma vez que obviamente a premissa de que os melhores adaptados sobrevivem não se aplica nesse caso. Thomas Young, o físico estaria na banca para estudar como conseguem aplicar tanta torção na lógica até atingir o coeficiente de resiliência. Eu não consigo compreender essa gente, mas mesmo assim eu vim.

Minha mãe brigou comigo por não aceitar que eu não comparecesse à festa de formatura do meu irmão. A verdade é que nem da minha família eu gosto. A pobre da minha mãe vive me perguntando se eu vi a entrevista de um fulano qualquer no programa da Fátima. Eu não sei quem é o fulano, nem a Fátima. As vezes me dá vontade de perguntar se é a Nossa Senhora de Fátima. Meu pai está sempre ensimesmado. Ele só dialoga para dentro. O vejo sentado consertando algo e conversando a valer. Com ele mesmo. Mas basta sentar à mesa para tomar café que o mutismo ataca. Senta, come, ouve, não fala nada, se levanta e sai. E tem o tal do meu irmão. Irmão é aquele desconhecido que viaja ao seu lado na classe econômica para Washington. Onze horas, ombro com ombro. Uma eternidade dividindo em espaço exíguo demais para dois. Mas você sabe que para chegar num lugar legal precisa fazer essa concessão. O segredo é ficar quieto a maior parte do tempo. E torcer para o colega da poltrona ao lado fazer o mesmo. Eu não gosto do laureado. Mas mesmo assim, eu vim.

Também não gosto de festas. Quer dizer, meu problema não é exatamente com festas. Eu não gosto mesmo é de gente. Gente feliz então, eu acho insuportável. Deve haver alguma teoria que explique a euforia. Na verdade, eu tenho uma. Chama-se Teoria do U-hul. A felicidade da pessoa é inversamente proporcional ao grito do u-hul dado aleatoriamente numa festa. Eu acho bem curioso. Basta o DJ trocar a música que começa a sinfonia de u-hul. Não interessa qual seja a troca. Pode estar tocando Bruno Mars, começa Macarena, a turma do u-hul ataca. Como alguém pode ficar feliz com isso? No geral acho as músicas das festas ruins. Por isso fico sentada observando as amigas se abraçando, rindo e jurando amizade eterna, até começarem a disputar o mesmo cara e terminarem rolando numa briga no gramado. Ou então chorando e vomitando nas havaianas enquanto descobrem que deixaram de ser universitárias e passaram a ser desempregadas. Mesmo ciente dessa miséria toda, eu vim.

Vim e logo arrumei um lugar para me sentar. Porque a indumentária que exigem é de lascar. Eu sou muito mais feliz usando moletom. Sem nada me apertando os pés e a cintura, sem me preocupar se o decote desceu ou se a saia subiu. Acho essas festas de gala uma versão soft de uma festa a fantasia. Usamos roupas com as quais não iríamos à padaria comprar pão, com uma quantidade de maquiagem que nos deixa irreconhecíveis. Somente quem já usou cílios postiços entende o que é ser o Frankenstein por um dia. Sair arrancando partes do corpo é uma sensação estranha. Tem os acessórios: bolsa, anel, brinco, colar... E ainda tem o cabelo. Há quem faça obras arquitetônicas capazes de impressionar Frank Lloyd Wright. Vejo aqueles penteados com tanto grampo, gel e laquê que daria pra construir um prédio de três andares. Essa coisa do cabelo pra mim já é demais. Dou um jeito de deixa-lo penteado e solto e já está ótimo. De qualquer forma é trabalho demais para diversão de menos. Mesmo assim eu vim.

As festas me lembram também o presídio. Enquanto todos estão se divertindo na pista de dança eu fico sentada vigiando as bolsas que estão sobre a mesa. Numa espécie de solitária, sem sair do lugar, interajo apenas com o garçom. Então fico presa esperando alguém trazer algo para que eu coma. E a comida é sempre ruim. Assim como a bebida. No geral eles servem vinho barato em taças sem haste que combinado com a infinidade de bolinhas fritas promovem uma azia dos infernos. Acho curioso quando o garçom vem com a cestinha de bolinhas. Então ele diz: croquete de brie com damasco, senhora! Eu pego a tal bolinha com o guardanapo e mordo na tentativa de expor as vísceras do acepipe. Sempre vejo apenas massa. Na boca sinto um gosto doce que pode ser tanto de damasco quanto de goiabada. Depois vem a bolinha de salmão, de parma, de fio de ovos com bacon, de isca de carne, de gorgonzola, de camarão, de palmito, de ricota com nozes. Para mim tudo tem gosto de bolinha. E ainda assim, eu vim.

Vim e já estava voltando. Aquela gente linda do começo começou a se desmanchar, mais duas cervejas e a festa ia começar a parecer o apocalipse zumbi, com gente se arrastando pelo chão, gravatas amarradas na cabeça, as damas sem sapato, os rapazes sem dignidade... Já tenho muita descrença na humanidade para ter que presenciar tudo isso. Então me levantei, me despedi dos meus pais, peguei o telefone para chamar o uber, me virei e te vi. Você estava tirando uma foto de uma família. Eu estava ali em segundo plano. Eu não havia gostado de nada, mas de você eu gostei. Por isso resolvi ficar mais um pouco.

 
 
 

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