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LYS CE QUE VOUDRAS

  • Foto do escritor: Michelle Ramos
    Michelle Ramos
  • 18 de abr. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 28 de jan.

Leia o que bem entender



Books by Li Hongbo. @the.whitecube

Eu tenho uma mania estranha: dou muitas voltas para contar algo simples. Uma amiga me disse que isso se chama storytelling. A questão é que minhas histórias são feitas de muitas outras histórias. Seria algo como se eu colocasse vários livros numa coqueteleira, agitasse bem e de lá tirasse apenas um livro, com todos os enredos misturados. Bem, a receita de hoje é um gin tônica que mistura O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, A Morte de Ivan Ilitch de Tolstói, Cartas a um jovem terapeuta do Contardo Caligaris e A biblioteca a noite de Alberto Manguel.


Vou começar pelo começo: Alberto Manguel. Ele é um hermano argentino, conviveu com um Borges cego (apenas dos olhos), escreveu muito e leu mais ainda. Meu antigo psicanalista de nome curto me recomendou a leitura dA Biblioteca a Noite depois de várias sessões em que falei de livros e histórias. Entre nós dois sempre houve uma estante, atrás da qual eu me escondia, amedrontada. Ao terminar de ler, compreendi o que ele queria me dizer: não nos escondemos em nossa biblioteca particular, pelo contrário, nos desnudamos. Descobri isso na página 265:


“A suspeita de que nós e o mundo somos feitos à imagem de algo maravilhosa e caoticamente coerente, muito além da nossa compreensão mas ao qual também pertencemos; a esperança de que nosso cosmos estilhaçado e nós mesmos, pó de estrelas, sejamos dotados de sentido e métodos inefáveis; o prazer de repetir a hipótese de que tudo que podemos saber da realidade é uma imagem criada pela linguagem – tudo isso encontra manifestação material nesse autorretrato que chamamos de biblioteca.”
 

O Complexo de Portnoy foi a consagração de Philip Roth como escritor. O americano, em seu livro, me fez entender porque a psicanálise só poderia ter nascido de um judeu. O livro é uma grande sessão de terapia (me perdoem os puristas), com o personagem principal Alex, narrando muito explicitamente ao seu analista suas sessões de onanismo e dramas familiares. Eu consegui entender todo o sufocamento que aquela relação edípica prolongada causava em Alex. Sobre isso, o personagem, em determinado momento do livro fala: “Não, com essa gente não precisa ficar escavando as profundezas – o inconsciente delas está estampado na testa.”


O inconsciente estava estampado também na testa de Ivan Ilitch, de Tolstói. Sempre que vejo a burocracia que os russos descrevem, penso no Brasil. Podem acreditar, eu sou, atualmente, um lactobacilo vivo nos intestinos da burocracia. No livro, Ivan Ilitch morre na primeira página. O restante do livro se dá a narrar a longa agonia de uma morte lenta e dolorosa. Ivan viveu para o trabalho. Sua vida pessoal estava totalmente falida, de forma que o trabalho era o bunker em que ele se escondia. A iluminação veio, ainda que tardiamente...


“- Está errado. Tudo aquilo por que você viveu e vive é uma mentira, uma ilusão que encobre de você a vida e morte. E assim que ele pensou isso, ressurgiu seu ódio e, juntamente com o ódio, o sofrimento físico torturante e, com o sofrimento, a consciência da ruína, inevitável e próxima.”


Na quarta capa do livro está estampada a frase “Talvez não tenha vivido como é preciso.”

 

E então abro o livro que falta: Cartas a um jovem terapeuta, de Contardo Caligaris. Nascido na Itália, radicado no Brasil, formado em epistemologia e em letras e filosofia em Genebra, foi aluno de Barthes num doutorado em semiologia, psicanalista formado na Escola Freudiana em Paris... além disso escrevia uma coluna para jornal, autor de livros e por fim, roteirista e diretor de TV. Uma história cheia de histórias. Morreu de câncer recentemente. Uma amiga me mandou a notícia e além de lamentar comentei que sempre quis ler o “Cartas (...)”e acabei ganhando o livro de presente. Mas não só por isso. A amiga em questão sabe que em plena pandemia, quando ninguém mais precisava de incertezas, me inscrevi para a seleção em um curso de formação em psicanálise. Fui aceita. Por isso tive que trocar o psicanalista de nome curto pelo de nome longo.


Como Ivan Ilitch, desconfio que não tenho vivido como é preciso. E de repente, como se visse pela primeira vez, aos 42 anos, minha imagem do espelho, leio o recado de Caligaris:


“Resumindo, meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são um pouco (ou mesmo muito) estranhos, se (graças à sua estranheza) você contempla com carinho e sem julgar (ou quase) a variedade das condutas humanas, se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado pela vida afora, então, bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia seja uma profissão para você.”

Quando falo dos complexos de Alex, das fugas de Ivan, da esquisitice do Jovem Terapeuta, dos livros todos, falo de algo em mim. O danado do psicanalista de nome curto tinha razão o tempo todo. E só estou aqui, nesse ponto agora, porque aquilo que ergui como muro, ele usou como apoio. Eu entendi tudo psicanalista de nome curto.


“Historicamente, à luz do dia, o fim da Biblioteca [de Alexandria] permanece tão nebuloso quanto sua aparência real; historicamente, a Torre [de Babel], se é que alguma vez existiu, não passou de um empreendimento imobiliário ambicioso e fracassado. Como mitos, porém, na imaginação noturna, a solidez de ambas as construções é irrepreensível. Podemos admirar a torre mítica erguendo-se diante de nossos olhos para provar que vale a pena tentar o impossível, por mais devastador que seja o resultado; podemos vê-la erguendo-se laboriosamente, fruto de uma sociedade unânime, que invade tudo, como de formigas; podemos testemunhar seu fim na dispersão de seus indivíduos, cada qual isolado em seu próprio círculo linguístico. Podemos vagar pelas estantes abarrotadas da Biblioteca de Alexandria, onde toda a imaginação e todo o conhecimento estão reunidos; podemos reconhecer em sua destruição a advertência de que tudo o que juntamos há de perder-se – mas também que boa parte do que perdemos pode ser reunido novamente; podemos aprender de sua ambição esplêndida que a experiência do homem pode, pela alquimia das palavras, tornar-se a experiência de todos, e como essa experiência, destilada mais uma vez em palavras, pode servir a cada leitor em particular para algum propósito secreto e particular.”

A Biblioteca a Noite, de Alberto Manguel




Quod natura reliquint imperfectum, ars perficit.

 
 
 

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