Primeiro foi a bateria do telefone. Depois foi a bateria do carro. Depois fui eu. Vou explicar.
Semana passada o telefone do meu filho parou de funcionar. Mas esse telefone tem todo um carma. Foi um presente que eu tive que pagar. Depois ele caiu e quebrou a tela. Resolvi consertar e dá-lo ao meu filho. Tela quebrada mais algumas vezes até que, aparentemente, ele parou de funcionar semana passada. Tentei verificar de todas as formas o que havia com ele, menos uma: testar o carregador. E era ele o problemático. Só descobri isso depois de comprar um telefone novo. Acho que a vida está me pedindo educadamente que me livre desse aparelho. Assim, aviso que tenho um celular usado pra vender. Quem comprar leve-o para arrumar o viva-voz e para benzer (na igreja, no terreiro, tanto faz , fica a critério do novo proprietário).
Aí sábado foi meu carro. Acordei as 7h00 pra tomar café e ir ao psicanalista cutucar minhas feridas. Cansada, com sono, mas com propósito, chego no meu carro e nada da porta destravar. Como sempre a vilã foi a luz salão. A última vez que saí de carro foi terça-feira para ir ao dentista. Logo, foram 5 dias de luz acesa... Sim, perdi a sessão de psicanalise. Veio o socorro do seguro, deu carga na bateria, assinei o papel e o moço me pediu que deixasse o carro ligado por meia hora pra bateria ter carga suficiente.
Ontem fui eu. Ontem minha energia foi embora. Não teve texto, não teve jantar, não teve filme, não teve conversa por whatsapp, não teve nada. Minha luz apagou. Por algumas horas não havia nem passado, nem presente, nem futuro. Só um nada a quem me entreguei.
Acordei triste. Quando isso acontece não consigo contar história. Não vejo graça em nada. Tenho um texto pro meu curso de escrita pra fazer, atas do trabalho a despachar, casa a organizar, livros para ler. Não quero fazer nada disso. Quero fugir pra algum lugar onde haja luz. Preciso de uma carga na minha bateria. Falei com meu psicanalista. Ele me disse que preciso aprender a digerir os sentimentos. Curioso como algumas palavras são capazes de nos destruir. Essa coisa de digerir sentimentos já apareceu em minha vida e aparentemente é o curto-circuito que descarrega minha bateria de tempos em tempos. Eu queria que houvesse um sonrisal sentimental, pra ajudar a digerir toda a frustração, sentimento de inadequação, raiva, carência. Um paracetamol emocional pra entorpecer as dores de amor, desprezo, fracasso. Uma tala para corações partidos. Um colírio que seque lágrimas.
Por que não conseguimos inventar uma máquina pra distorcer a realidade? Um dispositivo eletrônico pra resolver mal entendidos? Um raio-x que mostre o que o coração sente? Uma máquina capaz de traduzir com perfeição aquilo que sentimos para contar pro mundo? A única coisa perto disso que consigo imaginar é contar histórias. Mas hoje não. Hoje a bateria da máquina de contar histórias continua descarregada.
Não consigo inventar histórias hoje, mas posso contar uma do Saramago. Intermitências da Morte fala da história de uma país onde as pessoas param de morrer misteriosamente. Isso desequilibra todas as relações entre as pessoas. Há aquelas que querem morrer, as que desejam a morte de outras, a igreja não tem mais almas para salvar, as casas de repouso entram em colapso, as funerárias entram em falência, a previdência social quebra. Nessa história a morte é uma funcionária pública (quase como eu), muito ciente de suas atividades (como eu) e para por o serviço em ordem ela traça uma estratégia (totalmente eu). Então ela manda avisos para as pessoas se organizarem que em cinco dias ela passaria naquela residência para levar a pobre alma. Ocorre que a morte viu que havia uma “ordem de serviço” em aberto. Um músico que deveria ter morrido há uns dias ainda perambulava solitário pela cidade. Ela se apaixona pelo músico. O final? É tão lindo que vou transcrevê-lo.
“Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.”
Não se importem em saber o final da historia. Ninguém lê clássico pra saber o final. Se lê clássicos para saber quem você é na história. Eu, nesse caso, sou a morte. Esperando o momento de minhas pálpebras descaírem.
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