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Foto do escritorMichelle Ramos

Fragmentos de uma vida


Fragmento 1


Sábado passado fui almoçar com meu filho. Estávamos na rua, esperando o sinal abrir para nós, quando ele fala:

- Mãe, sabe aquela música do Queen, Somebody to Love?

- Sei filho – respondi. O que tem ela?

- Mãe, eu acho que você precisa Somebody to Love. Você é muito solitária.

- É mesmo? Como resolver isso?

- Só achar o homem perfeito. – ele responde. Aquele homem que gosta de ler como você, que gosta de vinho como você e que gosta de jazz. Ele tem que ter os mesmos interesses que você.

Achei curioso. Em nenhum momento ele falou de utilidade. Ele não falou sobre alguém que me ajude, que me dê presentes, que me bajule. Ele tratou só de afinidades.

Hoje, pensando nessa conversa, devo admitir que nessa ótica eu já encontrei dois homens perfeitos. Ambos os homens perfeitos se foram, me deixaram na beira da estrada, tomando sol na moleira. De fato, em ambos os casos, se tivesse que descrever o que senti quando eles se foram seria a sensação de estar alegremente num carro, numa road trip numa estrada muito agradável. De repente, nunca curva, num descampado, o motorista para o carro e sem quê nem pra quê, pede que eu desça do veículo e termine a viagem a pé. Aparentemente eram homens perfeitos para mim, mas eu não era a mulher perfeita para eles. Então a ciência da coisa é um pouco mais complexa.

 

Fragmento 2


Estava eu conversando com meu psicanalista (pode falar que faz terapia produção?) e eu estava naquele esforço pra me fazer entender quando me lembrei de um livro que comprei. Chama-se Lost in Translation – um compêndio ilustrado de palavras intraduzíveis de todas as partes do mundo. Por exemplo, em grego meraki significa entregar-se com todo coração a algo, como cozinhar, e fazê-lo do fundo da alma, com criatividade e paixão. Em russo razliubit é o ocaso do amor, um sentimento agridoce. Forelsket é um substantivo que designa a euforia indescritível que você experimenta quando se apaixona. Em alemão o substantivo kummerspeck refere-se ao peso que ganhamos quando comemos nossas emoções, traduzido literalmente significa bacon da melancolia. Tiám, em persa, significa o lampejo em seus olhos quando você acaba de conhecer alguém.

Traduzindo as histórias lá de cima, houve o tiám e então eu caí em meraki profundo, derivado do forelsket. Mas aí o razliubit deu o ar da graça e tudo acabou em kummerspeck. Escrevo isso e me lembro de uma amiga queridíssima que falava que eu era um filme iraniano: raro, de nicho, ninguém entende, mas há quem goste. Acreditem: isso foi um elogio. Enfim, acho que no final eu mesma estou lost in translation. Sobre isso Eckhart Tolle disse que “as palavras reduzem a realidade a algo que a mente humana pode compreender, o que não é muito”. Meu bom e velho Saramago era mais definitivo: “Há coisas que nunca se poderão explicar por palavras”. No livro o Homem Duplicado, de onde essa citação foi tirada, ele ainda diz: “(...) como conseguiremos nós explicar o que se passou, juntamos palavras, palavras e palavras, as tais de que já falamos noutro sítio, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjetivo, e, por mais que intentemos, por mais que nos esforcemos, sempre acabamos por nos encontrar do lado de fora dos sentimentos que ingenuamente tínhamos querido descrever.”

Fico pensando se nessa confusão os dois homens perfeitos chegaram a entender o quanto foram e ainda são importantes para mim. Então, se entre meus cativos 20 leitores estiverem os dois senhores circunspectos, tenham em mente que os levo em meu coração.

Atualmente estou num frenético iktsuarpok, que em inuíte (um idioma falado no ártico) significa o ato de sair continuamente para comprovar se alguém por quem você espera está chegando. O problema nesse caso é que o homem perfeito está em casa, lendo um livro, bebendo um vinho e ouvindo jazz, como eu, nesse exato momento. Somente com uma ousada manobra o acaso conseguirá colocar o terceiro homem perfeito no meu caminho. No fundo, no fundo eu sou apenas uma luftmensch... (procurem no google).



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