top of page
Buscar

Dia 48

  • Foto do escritor: Michelle Ramos
    Michelle Ramos
  • 3 de mai. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 28 de jan.


Vincent van Gogh - Worn Out 

48o. Dia da quarenta. Eu tenho um calendário de parede onde eu vou escrevendo nos diários. Peguei-o agora de manhã e fui fazer um inventário dos dias. Até agora meu ano tem o seguinte balanço: 122 dias corridos, sendo 48 arrastados. Minha alma de auditora, além de inventariar, busca defeitos. Desses 122 dias de 2020, alguns foram irremediavelmente estragados. Teve aquele que me queimei na praia e fiquei toda ardida. Brasilienses e praia são sempre descompassados. Essa tara que desenvolvemos pela praia é digna de estudo. Se estamos no litoral não interessa nada, apenas nos expormos o máximo possível à maresia e aos raios UVA e UVB. Nesse dia eu comprei uma garrafa de espumante, sentei na varanda do apartamento e fiquei olhando a imensa árvore que se erguia em frente, com uma profusão de outras plantas nela enroscada. Parecia um edifício de plantas... Teve também uma sequencia de dias estragados por causa de uma reação alérgica que me deixou parecida com a mulher elefante. Um que estraguei com uma crise de choro. Engraçado que no meu inventário apareceram os dias políticos: que prometeram mas não entregaram. Teve um curso que quase começou, uma entrevista que quase aconteceu. E tem esses 48 aí que não sei ainda onde encaixar.


Esses dias de quarentena lembram a Jangada de Pedra, de Saramago. No livro, a Península Ibérica se solta da Europa, deixando Espanha e Portugal à deriva. Sim, ela não vira uma ilha como um ponto fixo no mapa. A península sai tal qual uma Jangada de Pedra singrando os mares. Não havia ninguém capaz de guiar essa nau. Sua rota era alterada repentinamente. Ela sobe, desce, gira sobre o próprio eixo, se inclina... A história é tão fantástica quanto a que vivemos hoje. 7 bilhões de pessoas de joelhos para algo que nem sabemos se é ser vivo ou não. Nossa vida, medida em segundos, parada por dias. Nenhuma possibilidade de planejamento com prazos. Quem apresenta soluções e respostas está precisando rever a medicação.


Somos o que nesse momento? Seres humanos com sonhos e ambições ou uma placa de petri cheia de caldo nutritivo? No livro do Saramago, em determinado momento, os personagens se perguntam se eles são, agora, marinheiros. A resposta é maravilhosa: ainda que estejamos na terra e ela viaje pelo universo, isso não faz de nós astronautas. Logo, não, eles não são marinheiros. Qual dimensão temos nesses momentos? Aumentamos? Diminuímos? Como um leque, nos desdobramos e mostramos novas faces ou nos recolhemos e nos tornamos uma régua de várias camadas, que pela sobreposição geram força e resistência?

Engraçado é que passamos o tempo todo tentando preencher um vazio e de repente a terra que usamos é tragada e o buraco volta muito maior. Valerá a pena encher de terra novamente essa vala intermitente? Até ontem éramos os soberanos do universo. Hoje estamos nocauteados por um vírus... Quando foi que nos esquecemos que fazemos parte da cadeia alimentar? Fizemos armas de fogo que matam o leão e o orangotango... Mas veio um insider nos lembrar que a natureza não tem um carinho especial por nós. Saramago já falou disso em 1986...

 

“(...) as tentações do antropomorfismo, que tudo vê e tudo julga em relação obrigatória com o homem, como se, de fato, a natureza não tivesse mais que fazer que pensar em nós. Seria tudo mais fácil de entender se confessássemos, simplesmente, o nosso infinito medo, esse que nos leva a povoar o mundo de imagens à semelhança do que somos ou julgamos ser, salvo se tão obsessivo esforço é, pelo contrário, uma invenção da coragem, ou mera teimosia de quem se recusa a não estar onde o vazio estiver, a não dar sentido ao que sentido não terá. Provavelmente, o vazio não pode ser preenchido por nós, e isso a que chamamos sentido não passará de um conjunto fulgaz de imagens que num certo momento parecem harmoniosos, ou onde a inteligência em pânico tentou introduzir razão, ordem, coerência.”

 

Entre o balanço dos dias bons e ruins, vamos seguindo. Não sei bem se seguindo em frente. Assim como a ilha que girou no próprio eixo, já não sei onde o sol nasce, onde fica o norte, se sou marinheira ou astronauta... não que antes eu soubesse, mas tinha uma leve desconfiança. Hoje não sobrou nada.


 
 
 

Comments


61992200313

Formulário de Assinatura

©2019 por Você Escreve?. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page