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Foto do escritorMichelle Ramos

De calada, tornei-me, pois, clandestina



Desde sempre eu sou muito resoluta. Levo algum tempo pra tomar uma decisão, mas ao toma-la, faço com firmeza. É isso e pronto. Por muito tempo (na verdade durante esses quase 41 anos de vida) fui rotulada de intransigente. Achava que essa visão vinha do fato de que eu não me sentia obrigada a mapear minha tomada de decisão. Assim, entendia como direito das pessoas ter essa visão sobre mim. E assim, calava-me.

Eu converso muito, falo pra caramba. Mas inacreditavelmente as pessoas dizem que sou discreta e nunca falo o que estou sentindo. Sempre acho que falo além da conta, então essa visão me surpreende. Nunca compreendi exatamente o que as pessoas esperam que eu diga, o quanto esperam que eu me abra. Mas também achava que me ver assim era um direito delas. E assim, calava-me.

Na verdade fui infeliz por muitos anos. Mas infeliz secretamente. Ninguém tem responsabilidade com minhas escolhas e meu estado de espírito era reflexo de péssimas escolhas. Mas é aí que mora a cilada. Ao não gritar pro mundo, as pessoas se julgavam no direito de opinar sobre mim sem saber da  missa, a metade, como diria a minha mãe. E como achava que isso era direito das pessoas, calava-me.

Eis que descubro, nessa confusão, um troço chamado violência simbólica. Todos reconhecemos uma violência física: há uma deformação na matéria nesses casos. Mas da violência simbólica não escorre sangue. Logo, exige do espectador um tantinho de perspicácia pra entender o que tá rolando.

Então durante um tempo, eu aceitei me definir pelo olhar do outro, sempre achei que essas observações eram feedbacks importantes (o mundo corporativo ainda vai desgraçar o mundo irremediavelmente). As vezes são, mas não sempre. Algumas vezes é só a maldade humana operando no nível estratégico. E nessa brecha de dar espaço ao outro, você vai perdendo território. Viver é como jogar War. Há fronteiras que você não pode deixar NINGUÉM ultrapassar. Nem que pra isso você precise construir um muro à la Donald Trump. Não digo fazer um muro pro mundo em geral, afinal, vivemos em sociedade. Mas se Dudinka resolver invadir suas terras e te dominar, proteja-se (ou ataque de volta... cada um sabe como joga melhor).

Mas a verdade é que todos devemos aprender a estabelecer os limites da convivência. Uma vez uma pessoa gritou comigo e minha percepção é que ela estava disposta a me quebrar na porrada. Ouvi um “quem você pensa que é pra virar as costas e me deixar falando só?”e sob esse argumento ela explicou que poderia gritar comigo porque eu não ouvia.  Veja leitor, não era uma questão mecânica de uma onda sonora que não propagou como devia. Era uma incompatibilidade de opiniões. E eu, achando que isso era direito dela, calei-me.

As pessoas me diminuíram, me julgaram, me humilharam, me fizeram perder a fé em mim mesma, mas tudo com a minha anuência, porque em algum momento me disseram que alguém tem que ceder, e eu substituí o alguém da frase por Michelle e levei essa lição longe demais. A violência simbólica vai nos machucando até nos matar, sem verter uma única gota de sangue. É uma forma de matar sem sujar a sala.

Ainda que o silêncio seja de ouro, ele não serve de nada quando se está caindo do precipício. Perceba que nesse caso, as asas da palavra são uma riqueza infinitamente superior. A sabedoria não está em calar sempre.

O título desse texto vem de um livro chamado A Beleza do Ouriço (parece que virou filme também). Conta a história de das mulheres, em geral a maior vítima do silêncio. Uma prestes a fazer 13 anos, outra com 44 anos, ambas desacreditadas da vida. O livro começa com a decisão da garota de 13 anos de se matar no dia do aniversário. Ambas vítimas de sutis violências simbólicas. Como uma grandeza inversamente  proporcional, a violência simbólica é mais cruel quanto mais sutil, porque facilmente assimilável pela vítima. Ao fim a pessoa apanha e acredita que o chicote que estralou sobre seu lombo estava nas próprias mãos.  Acabaram se libertando pela palavra.

Mantendo minha descrição, confesso que essa reflexão nasceu de uma semana de intensa violência simbólica na minha vida, da qual não partilharei detalhes. Então, ao mesmo tempo que faço esse texto como um alerta, faço em solidariedade. Falo de uma dor que dói em mim e em muitos outros.

Recomendo a leitura do livro, claro. Lá pelas tantas Paloma, a garota, faz uma observação sobre René Michel, a mulher de 44 anos: “A sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes. “ A pergunta que fica é: como faz para deixar de ser ouriço? Como voltar a ser cidadão do próprio mundo?

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