Vocês sabem que sou uma lunática, certo? Mas só por parte de mãe, quero deixar claro. Por parte de pai eu sou normal. Mas é claro que não vou direto ao ponto e ensinar logo de cara como ler um poema. Até porque não se trata de técnica. Curioso usar da prosa para explicar a poesia, sempre tem como colocar um pouco de poesia na prosa, já não garanto ser possível uma poesia prosaica. Então vamos poeticamente aprender a ler poesia. Comecemos por uma história.
Estava eu lendo Homo Deus, do Yuval Noah Harari. Uma das análises presentes nesse livro é: afinal, o que é o homem? E ele traz uma interpretação possível: um homem é um aglomerado de átomos que se movimenta por conta de reações químicas que ocorrem no cérebro. E nesse ponto ele apresenta um enigma há muito conhecido da filosofia: o que acontece na mente que não acontece no cérebro? Vou explicar a questão posta: sabemos que nossos neurônios trabalham no processamento da informação. Um homem vê um leão, sinais elétricos mandam essa informação ao cérebro, o cérebro processa e envia sinais para produção de determinado hormônio, coração acelera mandando mais sangue para o corpo e mais um milhão de coisas ocorrem em segundos e o homem foge. Então, qual seria o papel do sentimento nisso tudo? Para que ele serve, se no final, o que conta é o que acontece lá no nível bioquímico?
Então pulemos para outra forma de ver o homem. Luiz Alberto Oliveira, o moço da palestra do texto anterior, faz uma reflexão interessante. Ele diz: homens são feitos de átomos. Mas átomos não possuem sistema locomotor. Então como um aglomerado de átomos sem sistema locomotor formam um homem semovente? E tem mais: a cada 7 anos todos os átomos do nosso corpo são renovados. Se você tem 49 anos já não é mais o mesmo a sete ciclos. E ainda querem encontrar coerência no ser humano.
Então vamos ao modo de ler poesia: a forma com que organizamos letras para formar palavras não é a mesma forma que organizamos palavras para formar frases. A forma com que organizamos frases para formar parágrafos, não é a mesma forma que organizamos parágrafos para formar capítulos. Ainda que uma biblioteca seja uma junção de letras, não somos capazes de ver a beleza das histórias de Saramago se lêssemos sua obra letra a letra. Só enxergamos Saramago com uma amplitude maior. Ainda que a obra de Saramago seja composta por letras, não é nesse mínimo onde a magia se encontra. Estamos falando da prosa e também da poesia. Nunca conseguiremos ler poesia se a encararmos com a mesma regra da prosa. Se a prosa não pode ser compreendida letra a letra, a poesia jamais será compreendida palavra a palavra, porque há ali um todo muito maior que as partes. Mas eu vou ser mais didática.
Certa feita conheci uma pessoa um tanto quanto curiosa. Era um grande leitor, conhecedor de muitas teorias sobre a humanidade, resumindo: alguém muito inteligente e sensível. Tinha uma história de vida curiosa e instigante. Por outro lado, tinha umas excentricidades, como por exemplo guardar os ovos cozidos com a casca na porta da geladeira. Numa ocasião fui fazer omeletes e absolutamente nenhum ovo quebrava. Ele também guardava uma bicicleta embaixo do fogão. E deixava o mamão na geladeira com a colher fincada em seu centro, algo como Excalibur na pedra. Imaginem segurar e pior, enfiar essa colher gelada na boca. Essa pessoa, tão culta e excêntrica terminou um relacionamento por mensagem de WhastApp.
Se fossemos lê-la letra por letra, quem seria essa pessoa? Um intelectual, um esculhambado ou um cruel? Nada disso e tudo isso ao mesmo tempo, dirão os mais versados no bicho humano. Então, para você que não sabe ler poesia, um bom exercício é começar a ler pessoas. Um poema só tem sentido em sua completude, assim como o homem. Um homem se assemelha mais a um poema do que a uma máquina, podem acreditar. Pensem comigo: uma máquina é altamente previsível. Você aperta o power do liquidificador e ele liquidificará. Não espere um improviso muito solto do liquidificador e de repente receber clara em neve. O poema e o homem não. Sua alta dose de imprevisibilidade pode entregar as palavras mais duras das pessoas mais doces. Poemas e homens são exemplos perfeitos da mais completa subversão da ordem e isso gera toda uma infinidade de surpresas. Agora saia daqui e vá ler um bom poema.
P.S O poema acima é do poeta chileno Nicanor Parra e está no livro Só para Maiores de Cem Anos - antologia (anti)poética da Editora 34.
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