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Carta ao Querido Namorado

  • Foto do escritor: Michelle Ramos
    Michelle Ramos
  • 7 de jun. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 28 de jan.


Obra do artista Graziano Locatelli
Obra do artista Graziano Locatelli

Meu querido namorado,

Sabe quem perguntou por você essa semana? A minha chefe, a Fada Gigante. Sim, eu troquei de chefe. Tem alguns meses, ainda estamos nos conhecendo. Ela me parece uma boa pessoa. Cabeceando na pequena área acredito que ela seja imbatível. Mas como ela ainda não sabe nada de mim, ela resolveu me prometer uma folga dia 12 de junho caso eu entregasse um trabalho hercúleo até quarta. Ela abriu a proposta falando que me deixaria curtir o dia dos namorados. Então eu falei que você não existia e ela percebeu a falha da premissa.

Eu agradeci a folga, namorado. Ainda que você não exista, será bom ter um feriado prolongado. Vou poder fazer vários nadas, talvez até pensar em você. Meu filho anda meio impaciente com minha total incapacidade de encontrá-lo. Já me sugeriu procurar no google, usar aplicativos e até sair de casa. O problema, querido namorado, é que muitos farsantes apareceram dizendo que eram você. O Borges tem um livro chamado História Universal da Infâmia onde ele faz uma pequena biografia de grandes patifes da humanidade. Nesse livro ele conta a história de um golpista que se fez passar pelo filho perdido de uma ricaça. Era um plano arriscado, dado que ele não era NADA PARECIDO com o sumido. Mas ela acreditou, namorado. Porém, quem sou eu pra julgar? Já confundi poder, repressão, ódio, desprezo, dependência, conveniência e utilitarismo com amor. Então tomar Arthur Orton, um chileno de Talcahuano, por Roger Charles Tichborne, militar inglês criado na França, me parece perfeitamente possível.

Sabe namorado, quase ninguém pergunta por você, de maneira que quase não me incomodo com sua inexistência. Um dos benefícios de ser solteira depois dos 40 é que as tias que perguntam “cadê o namorado?” ou morreram ou desistiram de você. E quando fazemos a prova dos nove, no dia-a-dia, ter ou não namorado dá na mesma. Pode até ser que não haja ninguém pra lavar a louça, mas não preciso guardar sapato de ninguém. Leo Jaime tem uma música que resume a lógica. “Ninguém pra ligar e dizer onde estou/ Ninguém pra ir comigo onde eu vou/ Por outro lado / Ninguém pra abaixar o volume/ Ninguém pra reclamar dos pratos sujos /Ninguém pra fingir que eu não amo.” Então vou levando meus dias com a sua ausência numa boa. Mas esse acontecimento com a Fada Gigante trouxe o assunto à tona.

Saindo da psicanalise eu passei na floricultura. Minhas flores preferidas namorado, anote aí, são as astrolmélias. A última vez que ganhei flores foram astrolmélias... Quem as enviou dizia que só dava flores aos mortos. Dias depois ele me matou, mostrando coerência. Hoje elas estavam em promoção, apenas R$ 5,99 o maço. Menos as vermelhas. As vermelhas estava R$ 15,00, por causa do dia dos namorados. Você fode com o IPCA, namorado.

Sabe namorado, eu continuo a mesma. Continuo com a mania de fazer piquenique no parque, lendo em velocidade absurda, continuo fazendo piadinhas da 5a. série, mas ainda muito madura pra minha idade. Alguns roxos no corpo, dessa vez não do circo, mas de bater a perna na quina dos móveis. Continuo péssima em entender mapas e direções, até hoje sem assimilar a direita e a esquerda. Ainda paro pra tirar fotos de muros e fachadas, coloco açúcar no café, o aplicativo de interação social só se inicia após o desjejum. Continuo irônica e sarcástica, mas apenas na vida real. Aqui não. Continuo o Heautontimoroumenos, o “carrasco de si mesmo” do poema de Baudelaire (Não sou acaso um falso acorde/Nessa divina sinfonia,/ Graças à voraz Ironia/ Que me sacode e que me morde?), apesar de ter como poema preferido o J'ai tant rêvé de toi do Robert Desnos (Eu tenho sonhado tanto com você/ Que você já não pertence mais à realidade/ Ainda haverá tempo para tocar seu corpo vivo,/ Beijar sua boca e fazer sua voz querida/ Ganhar vida outra vez?).

Aconteceu uma coisa essa semana que me fez pensar em você. Eu fui ao hortifruti, a.k.a verdurão (boa piadinha do dia dos namorados!!!) fazer minha feira. Ah, continuo com o sonho de me fantasiar de cenoura e aterrorizar os transeuntes, sob o anonimato propiciado pela fantasia. Voltando ao assunto, fui fazer minhas compras a pé, com meu carrinho de feira. Como sou moderna não tenho um carrinho daqueles de arame, mas um bem fashion, feito com um tecido encerado preto com figuras geométricas rosa. Dá pra levá-lo pra rave. Cumpri minha missão, voltei pra casa e guardei tudo nos devidos lugares. No meio da semana me assaltou a lembrança de ter comprado uma única batata doce. Lembro-me de pegá-la na gondôla, mas tive dúvida se havia passado no caixa. Fiquei elocubrando se havia sido vítima de um golpe sórdido e alguém acabou se apossando da MINHA batata doce. Madura como sou, resolvi lidar com essa perda e não pensei mais nisso. Hoje namorado, fui pegar o carrinho e a batata doce estava lá. Eu olhei pra batata doce e pensei: depois de tanto tempo escondida, será que convém comer essa batata? Terei coragem? Apliquei essa lógica a você, querido namorado, e creio que terei que tratar disso na terapia. Desculpe, você bem sabe namorado, nunca perderia essa piada.

Namorado, eu nem sei se você está sumido ou se você simplesmente não existe. Supondo que você só está sumido, #oisumido, vou transcrever um trecho do livro das Mil e Uma Noites. Já me compararam à Sherazade, namorado. De fato, eu tenho muita história pra contar, mas eu não invento. A historia se chama História dos Dois que Sonham.

“O historiador arábico El Ixaqui narra este acontecimento:  Contam os homens dignos de fé (porém só Alá é onisciente e poderoso e misericordioso e não dorme) que houve no Cairo um homem possuidor de riquezas, porém tão magnânimo e liberal que as perdeu todas, menos a casa de seu pai, e que se viu forçado a trabalhar para ganhar o pão. Trabalhou tanto que o sono o rendeu certa noite debaixo de uma figueira de seu jardim, e viu no sono um homem encharcado que tirou uma moeda de ouro da boca e disse: "Tua fortuna está na Pérsia, em Isfarrã; vai buscá-la". De madrugada, acordou, empreendeu a longa viagem e enfrentou os perigos dos desertos, das naus, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou por fim a Isfarrã, mas no recinto dessa cidade a noite o surpreendeu, e ele parou para dormir no pátio de uma mesquita. Havia, junto à mesquita, uma casa, e por decreto de Deus Todo-Poderoso, uma quadrilha de ladrões atravessou a mesquita e se meteu na casa, e as pessoas que dormiam acordaram com o barulho dos ladrões e pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão dos vigias daquele distrito acudiu com seus homens, e os bandidos fugiram pelo terraço. O capitão fez revistar a mesquita, e nela deram com o homem do Cairo e lhe infringiram tantos e tais açoites com varas de bambu que ele esteve perto da morte. No segundo dia, recobrou os sentidos no cárcere. O capitão mandou buscá-lo e disse: "Quem és, e qual a tua pátria?" O outro declarou: "Sou da cidade famosa do Cairo e meu nome é Mohamed El Magrebi". O capitão perguntou: "O que te trouxe à Pérsia?" O outro optou pela verdade e lhe disse: "Um homem ordenou-me, em sonho, que viesse a Isfarrã, porque aí estava minha fortuna. Já estou em Isfarrã e vejo que essa fortuna prometida devem ser os açoites que tão generosamente me deste". Ante semelhantes palavras, o capitão riu até mostrar os dentes do siso e acabou por lhe dizer: "Homem desatinado e crédulo, três vezes sonhei eu com uma casa na cidade do Cairo, em cujo fundo há um jardim, e no jardim um relógio de sol e depois do relógio de sol, uma figueira, e após a figueira uma fonte, e sob a fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, no entanto, produto de mula com qualquer demônio, tens errado de cidade em cidade, na fé única de teu sonho. Que eu não volte a te ver em Isfarrã. Toma estas moedas e vai-te". O homem pegou-as e regressou à pátria. Debaixo da fonte de seu jardim (que era a do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus lhe deu bênçãos e o recompensou e o exaltou. Deus é o Generoso, o Oculto.” 

Se você chegou até aqui namorado, vou te contar uma coisa: esse trecho foi extraído do livro do Borges. Por ser um livro sobre a infâmia e por não ter lido As Mil e Uma Noites, não sei se trata-se de um texto das arábias ou mais uma pegadinha do autor. Assim como você, querido namorado. Seria você uma linda história ou apenas uma chacota de Deus?







 
 
 

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