A sorte, para ele, sempre pareceu uma imagem de peep show. Pela janela ele via aquela mulher insinuante, mas sabia que jamais poderia toca-la e desfrutar daquele corpo. Ainda que soubesse ser inalcançável, sempre flertou com ela. Assim, sempre que ia a lotérica pagar as contas da empresa, fazia uma aposta. Uma aposta única de seis números na mega sena. Nunca quis se aventurar em nenhum outro jogo, porque para ele era tudo ou nada: ou a riqueza total ou se manter naquela vida ordinária.
Ele era um homem simples, quase sem estudo. Terminou o ensino médio quando ainda se chamava ginasial. Começou sua carreira de motoboy quando ainda se chamava estafeta. Se casou com uma mulher e teve filhos quando isso ainda era o destino líquido e certo de um homem. E seu ideal de riqueza era ter uma fazenda grande, dois carros na garagem – uma caminhonete pra ir pra fazenda e um camaro amarelo que é o carro da moda, ainda que ele não saiba o porquê - umas três casinhas alugadas na cidade e umas quatro mulheres para o satisfazer.
Naquela sexta-feira, quando foi a lotérica viu a mega sena acumulada em R$ 43 milhões. Com toda a fé que havia no peito jogou os seis números. Fez um tempo na padaria antes de voltar para empresa. Depois do expediente bebeu no bar que ficava na esquina da casa, jogou dominó e truco. Voltou para casa já passava das 23h. Sábado acordou de ressaca, da bebida e da vida. Não aguentava mais aquela casa de dois quartos para seis pessoas, aquele banheiro único mais disputado que um taxi em Wall Street. Não aguentava mais ver tanto dinheiro passando pela sua mão. Dinheiro da empresa em que trabalhava. Depósitos, saques, pagamentos, faturas, cartões. Um rio de dinheiro passava por suas mãos, mas ele vivia com sede. Pensou em como tudo seria melhor com dinheiro. Numa casa tão grande que parecesse estar sempre só. Um quintal com piscina e churrasqueira. Dinheiro dele, que ele pudesse esfregar na cara. Dinheiro real e palpável, não aquele prazer fugaz do peep show.
No sábado a noite, de cara limpa pois o dinheiro havia acabado e nem uma cerveja ordinária ele pode beber, resolveu conferir o bilhete. Premiado. Os seis números coincidiram. A vontade dele e de Deus bateram. Quem disse que se precisa aprender muito para ser rico. Basta aprender os seis números certos. Nem tabuada nem conjugação verbal. Apenas saber os números de 01 a 60. Finalmente ele veria a portinha do peep show se abrir. Ele se aproximaria da fortuna e a teria em suas mãos. Se lambuzaria com ela até a exaustão. Seriam 43 milhões de gozos. Passou o domingo na cama. Não quis dar mais nenhum passo que não fosse em direção ao seu prêmio. E isso só seria possível no dia seguinte.
Segunda-feira não foi trabalhar. Nem deu satisfação pois não precisaria mais carregar o dinheiro dos outros. Saiu de casa cedo para que ninguém desconfiasse. Mas foi direto ao banco receber seu dinheiro. Eram 8h da manhã quando chegou, e a fila já estava grande. A agência abre as 10h. Teria 2h para planejar o resto da sua vida. Ao pegar o prêmio sacaria R$ 10 mil reais. Chamaria um taxi, mas escolheria um bem luxuoso. Iria para a churrascaria, tomaria chope mas não muito, pois a tarde trataria de negócios. Depois do apetite saciado iria procurar uma imobiliária, dessas elegantes que parecem palácio. Precisa achar uma fazenda, de preferência com bois dentro. Por fim iria comprar seu carro: estava na dúvida de qual comprar primeiro, a caminhonete ou o camaro. A vizinhança ia ficar em polvorosa, vendo-o chegar num carro zero. Mas pouco importava, não iria nunca mais dormir naquela casa. Iria lá apenas buscar a mulher e os 4 filhos.
A agência abriu, seriam apenas mais alguns minutos de pobreza. Apenas uma pequena fração de tempo o separava daquela vida ordinária. Esperou sonhando por mais 45 minutos. Chegou sua vez de ser atendido pelo gerente. Esnobe e impaciente, o gerente olhava para ele com pena. Pensava naquela pobre alma que provavelmente sairia dali com um empréstimo a juros extorsivos e um título de capitalização como investimento. Qual foi a surpresa quando o bilhete premiado foi apresentado. Tudo mudou. O dinheiro é uma chave que abre todas as portas. Ele foi levado para um espaço reservado da agência. Tomou café enquanto alguns procedimentos estavam sendo realizados. Bebeu água, respirou fundo. Até o ar que ele respirava era mais leve, corria seu corpo com suavidade. Tudo feito, o gerente sorridente entrega a ele um recibo e explica:
- Enviaremos seu bilhete para a conformidade. Esse é seu recibo. Volte daqui a quatro dias para receber seu dinheiro.
Atônito. Embasbacado. A virgem fortuna levaria mais quatro dias para ser deflorada. Saiu da agência tão pobre quanto entrou. Não tinha táxi. Nem churrascaria. Nem bilhete mais havia, pois ele o havia entregue a um homem que nunca viu na vida. Perambulou pobre pela cidade o dia todo. Olhava prédios dos quais poderia ser dono, caso tivesse pego seu dinheiro. Parava os carros para atravessar a rua e sentia a impaciência daquela gente motorizada. Sentia-se humilhado, porque tinha dinheiro para comprar todos aqueles carros e era obrigado a passar rápido e de cabeça baixa. Desolado com a perspectiva de passar mais quatro dias pobre foi para casa. Pegou um ônibus lotado. Foi em pé. Desceu naquela rua com mato alto crescendo na sarjeta e calçadas quebradas. Sacos de lixo revirado pelos cães. Chegou em casa mais cedo, por isso não encontrou ninguém. Resoluto, decidiu que não seria pobre mais nenhum minuto nessa vida. Pegou a arma na gaveta e atirou na cabeça.
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